Violência política virtual x vítimas reais
Episódios recentes de atentados e assassinatos de políticos têm aumentado o sinal de alerta para as ameaças contra a vida e a integridade física das pessoas que orbitam em torno do sistema político e eleitoral. Para citar casos recentes, acompanhamos o atentado ao pré-candidato à Presidência da Colômbia, que foi alvo de disparos de arma de fogo em ato político no meio da rua. Do outro lado da América, dois parlamentares do estado de Minnesota, nos Estados Unidos, sofreram atentados em suas residências, sendo que a deputada estadual e seu marido foram mortos, enquanto o senador estadual e sua esposa seguem hospitalizados, em meio a evidências de crimes políticos.
Por aqui, o cenário tampouco é diferente. Também recentemente, a única vereadora do Município de Formigueiro/RS foi encontrada morta; seu corpo, abandonado na estrada, apresentava marcas de esfaqueamento. Neste caso, o crime ocorreu logo após um pronunciamento na Câmara de Vereadores.
Vale rememorar um grande caso emblemático brasileiro: o assassinato da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, morta em via pública, juntamente com seu motorista, enquanto saía de um compromisso político.
Esses casos têm em comum, para além do ato de pôr fim à vida de um ser humano, a destruição do ser político. Não é contra quem se atenta, mas contra o universo que essas vítimas representam em ideias, histórias, crenças, hábitos, modos de vida e interferência ou liderança coletiva. É contra uma forma do ser político existir e agir de acordo com seus pensamentos, quando seu opositor não admite que essa forma exista e reverbere. Ainda, é em favor de um movimento que justifica seus atos em busca de um poder político supremo, que apenas pode vingar mediante o extermínio do outro.
É o ápice da violência política.
Essa avidez pelo poder político faz lembrar Achille Mbembe, quando, logo no início da obra Necropolítica (MBEMBE, 2025), afirma, como seu pressuposto, que “a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”.
É assim. Na violência política, os autores das agressões parecem estar imbuídos desses sentimentos de controle: quem deve ocupar cargos e espaços públicos, quem pode se manifestar, quem pode apoiar tal ou qual ideia, quem pode viver e quem deve morrer.
No Brasil, destaca-se a série de pesquisas realizadas pelas organizações não governamentais Justiça Global e Terra de Direitos, que desde 2020 vêm publicando o relatório intitulado “Violência Política e Eleitoral no Brasil: Panorama das violações de direitos humanos”. O último relatório, de 2024, demonstra o franco aumento desse tipo de violência no país e destaca como esse fenômeno tem se tornado prática rotineira na condução dos dissensos políticos, incrementando a polarização político-ideológica e a cultura do ódio contra aqueles que pensam ou vivem de forma diferente dos padrões socialmente mais aceitos.
Essa mesma pesquisa informa o crescimento das novas formas de violência política propagadas em ambiente virtual, por meio das plataformas digitais, através de ameaças e ofensas, com incremento dessa prática contra as mulheres e a inclusão da participação de organizações criminosas.
O cenário virtual é alarmante. A pesquisa intitulada O Mapa da Violência Política de Gênero em Plataformas Digitais, produzida em 2023 pelo Laboratório de Combate à Desinformação da UFF, analisou mais de 4 milhões de mensagens dirigidas a deputadas federais e senadoras entre 2019 e 2023. Os ataques virtuais abordavam misoginia, racismo, LGBTfobia, capacitismo e intolerância política, revelando um padrão sistemático de agressão a mulheres e minorias no exercício do mandato.
A violência política real está imbricada na violência política digital — inclusive quando se trata de letalidade — e não decorre de atos isolados ou repentinos. Muito pelo contrário. Elas surgem como consequência de um conjunto de manifestações, compartilhamentos, ideias, jargões, ideologias que, concatenados, formam um processo construído e estratégico, que acaba por fundamentar atos concretos destinados a retirar o outro, “considerado inimigo”, daquele lugar de poder, liderança ou mesmo interferência política.
A violência política não é fenômeno recente. Bem sabemos, pelo nosso histórico de perseguição política, votos de cabresto e opressão a trabalhadores, como exemplifica a narrativa de Victor Nunes Leal na obra Coronelismo, Enxada e Voto.
A novidade é que estamos imersos na sociedade turboglobalizada, expressão utilizada pelo professor espanhol Gonçal Mayos Solsona (MAYOS, 2022), ao tratar da globalização acelerada pela tecnologia, na propagação de informações e comunicação, partindo de parâmetros de interação nunca antes vistos, marcados pela velocidade, intensidade e alcance, mudando profundamente as relações humanas e políticas.
Assim, a tecnologia ganha centralidade porque permite que a violência política seja gestada nas redes sociais, de forma livre, para nascer concretamente na vida das pessoas por meio de intimidação, exclusão, desinformação e incitação ao ódio, gerando crimes reais e danos ao sistema político e eleitoral e, em última análise, à própria estabilidade de uma sociedade civil organizada.
Neste contexto, é fácil perceber que o processo de formação das forças de violência ganha adesão, facilidade, velocidade e notoriedade através da utilização das redes sociais, que potencializam a violência política e os discursos de ódio, notadamente pela utilização da inteligência artificial, da discriminação algorítmica e das propagações robotizadas, sendo grandes aliadas para a ruptura das bases democráticas e exclusão de grupos historicamente marginalizados (LOBO, 2023).
O que se pretende dizer é que a violência política digital não é um fenômeno difuso e abstrato; é real. Faz vítimas reais, mata pessoas e mata os seres políticos, com efeitos macro-sociais. Pois desestabiliza o cotidiano da cidadania e atinge o sistema político da sociedade civil organizada.
Entretanto, essa violência política praticada em ambiente digital serve (e muito!) para se buscar o enfrentamento e a responsabilização da violência política que causa vítimas reais, além dos danos coletivos, porque deixa rastros, evidências, provas e uma série conectada de avisos prévios que vão revelando a real intenção de exterminar o outro da arena política.
Se é fato que a violência política digital causa vítimas reais, também é o caminho para o enfrentamento concreto deste ilícito pelas instituições democráticas, na condução do devido processo legal moderno, que utilize a produção probatória tecnológica em seu favor, viabilizando responsabilizações e protegendo a cidadania da população de forma contemporânea.
Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog do Fausto Macedo e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica
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