Ancelotti diz que futebol, religião e polenta o unem ao Brasil

Publicado em: 18/11/2025 06:13

(FOLHAPRESS) – A reportagem mostra a Ancelotti a primeira capa da revista Guerin Sportivo em que ele apareceu -como jogador da Roma. “Il principe”, dizia a manchete de 1983. “Príncipe Carlo. Agora me chamam de Carlo Magno”, afirma o treinador da seleção brasileira, lembrando o apelido que lhe deu o jornal espanhol Marca após a conquista da Champions League de 2014 com o Real Madrid.

A alcunha é uma alusão a um histórico imperador da Idade Média. Em quatro décadas, o técnico da seleção brasileira passou de príncipe a imperador graças à persistência, em uma longa carreira repleta de triunfos, mas também de fracassos.

Aos 66 anos, o italiano vive um desafio novo, conduzir a seleção brasileira. O próprio Ancelotti não imaginava isso poucos anos atrás. Em 2009, na biografia “Preferisco la Coppa” (“Prefiro a Copa”), ele dizia que sonhava treinar a Itália ou uma seleção africana em um Mundial.
Agora, unido ao Brasil pelo futebol, pela religião e pela polenta, como conta nesta entrevista à reportagem, trabalha pelo hexa.
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PERGUNTA – Na sua biografia, o senhor diz que um dia gostaria de treinar uma seleção africana, ou a Itália, em uma Copa do Mundo. Agora, vai treinar o Brasil. O que diria hoje se pudesse falar com o menino Carletto do início da carreira?
CARLO ANCELOTTI – “Você fez uma ótima escolha. É muito estimulante treinar o Brasil, o ambiente agradável, a paixão é grande. Então, a escolha feita foi acertada.” É verdade, eu disse há muitos anos que gostaria de disputar uma Copa do Mundo. Disputar a Copa com o Brasil é uma experiência muito bonita.

P – Dizem que o futebol brasileiro está em declínio. Segundo o Datafolha, em julho apenas 33% dos brasileiros acreditavam no hexa. Ganhar a Copa ficou mais difícil?
CA – A Copa do Mundo é uma competição muito acirrada, com times muito fortes. Acredito que ganhar a Copa ficou mais difícil do que há 30 anos, porque a qualidade dos times, do jogo e dos jogadores individualmente melhorou. Antigamente, a maioria dos bons jogadores era brasileira. Agora, a qualidade aumentou muito também em outros países.

P – O senhor divide seu tempo entre o Canadá, onde mora sua mulher, e o Brasil. Pretende aumentar o tempo que passa no Brasil mais perto da Copa?
CA – Sim, digamos que me divido um pouco, mas a base de trabalho é no Brasil. Então, quanto mais se aproxima a Copa do Mundo, mais tenho que passar tempo no Brasil, observar os jogadores. É sempre estimulante uma nova aventura, porque permite conhecer coisas que você não conhecia, falar outra língua, é muito agradável.

P – O senhor citou em entrevista recente a polenta, típica da sua região natal na Itália, como uma agradável surpresa no Brasil. Que outras coisas o surpreenderam na cultura brasileira?
CA – A alegria, acima de tudo, e a capacidade de acolher os estrangeiros. Fui muito bem recebido, da mesma forma que outros treinadores que foram para o Brasil treinar, com quem também conversei, e comentaram exatamente isso, que o brasileiro é muito acolhedor com os estrangeiros. Depois, obviamente, a paixão pelo futebol, pela religião. Digamos que há muitos fatores que nos unem, porque sou religioso [católico praticante], amo o futebol. E amo polenta. Fui criado comendo polenta. Na infância, quando estava com a família, a polenta era o prato cotidiano. Comíamos de manhã, comíamos à noite, é uma boa lembrança. No norte da Itália é muito comum, fico feliz que também seja um prato no Brasil.

P – Seu filho Davide, que era seu auxiliar e agora treina o Botafogo, não faz falta como colaborador?
CA – Sim, sinto falta dele. Foi uma ótima experiência com ele, mas acho que era a hora certa para ele começar. Tem capacidade para isso, está feliz por estar lá, chegamos junto com a família dele. Eu o vejo sempre e fico feliz que esteja feliz com essa experiência.

P – O senhor costuma destacar a importância do idioma nas relações dentro do grupo. Por quê?
CA – Eu tenho que me esforçar para falar português, para me acostumar e me comunicar bem com os jogadores. Estou estudando e tentando. A língua é importante porque o ambiente de uma seleção é diferente do ambiente dos clubes. Se aqui [na seleção] a comunicação é coletiva, nos clubes é mais por grupos, por idiomas. Os franceses conversam entre si, os espanhóis conversam entre si…

P – O senhor disse que na seleção parece ter voltado aos tempos em que era jogador da Roma, com um clima muito bom. Por quê?
CA – A atmosfera é diferente, porque os jogadores têm o mesmo idioma, a mesma cultura, as mesmas tradições. Por isso, é mais fácil comunicar-se e estar junto. Hoje em dia, a comunicação pessoal é muito mais complicada porque há a tecnologia, que impede esse tipo de comunicação. Gostamos mais de nos comunicar pelo telefone do que entre pessoas.

P – O que o senhor acha do celular na concentração?
CA – O telefone é uma ferramenta muito importante para a vida cotidiana, mas limita as relações pessoais. Isso é evidente. Como disse aqui, felizmente, o uso do telefone na seleção é muito limitado, e, portanto, não preciso tomar medidas especiais.

P – Na Copa, o celular vai ser proibido?
CA – Proibido não é uma palavra de que eu goste, porque gosto de responsabilizar as pessoas em todas as situações. É claro que a comunicação no Mundial é um aspecto que deve ser considerado e que trataremos com calma nos próximos meses para tentar… não digo isolar a equipe, mas dar-lhe a tranquilidade necessária para ter um bom desempenho.

P O senhor afirmou ter observado 60 jogadores. Ainda são 60 ou esse número diminuiu agora que a lista final está mais próxima?
CA – O número diminuiu um pouco, estamos tentando estreitar um pouco o círculo para ser ainda mais cuidadosos na observação. Mas ainda há algumas dúvidas, e haverá algumas dúvidas até o final. É a escolha.

P – O senhor costuma citar o sueco Nils Liedholm (1922-2007), que o treinou na Roma, como um dos seus modelos. Chega a pensar: “O que Liedholm faria nesta situação?”?
CA – Sim. Liedholm foi um grande mestre em termos de comunicação. Tinha um caráter muito tranquilo e era muito bom em lidar com situações complicadas com um sorriso e um pouco de alegria.

P – O senhor também trabalhou com Cesare Maldini e Arrigo Sacchi. Poderia citar um exemplo do que aprendeu com eles?
CA – Sacchi está presente todos os dias. Tudo o que aprendi em termos de tática e preparação de treinos aprendi com ele. Maldini conheci muito jovem, quando estava no Parma, na Série C.

P – Até que ponto o senhor é entusiasta das estatísticas como ferramenta de trabalho? Na sua biografia, o senhor conta que na Copa de 1994 Arrigo Sacchi lhe pediu os números de Itália x Nigéria, mas o senhor tinha parado de anotar.
CA – [Risos] Eu era auxiliar, e Sacchi se interessava muito por estatísticas. Agora, é possível ter qualquer dado físico ou técnico. As estatísticas no futebol de hoje são importantes apenas para confirmar o que seus olhos veem.

P – Qual estatística o senhor considera mais importante?
CA – Uma estatística muito precisa são os dados físicos. Nos dados técnicos, há um pouco mais de instabilidade. Há dados técnicos que podem ser interessantes ou menos interessantes. Por exemplo, para mim, a posse de bola não é um dado técnico interessante. A porcentagem de passes bem-sucedidos é interessante, a porcentagem de passes em profundidade é interessante. Se uma equipe tem posse de bola, mas o técnico pede um passe direto, ter tido mais posse de bola não significa que você jogou de maneira melhor: você jogou de maneira pior em relação ao que o técnico pediu. Por isso, os dados técnicos devem ser interpretados.

P – Em algumas ocasiões, o senhor citou a seleção brasileira de 1994 como modelo, com a defesa forte e a dupla de atacantes.
CA – Na minha opinião, 1994 é um exemplo para entender quanto é importante defender. Não importa se você joga com dois ou quatro atacantes, o importante é que todos defendam, porque defender bem não é uma questão de qualidade, é apenas uma questão de atenção, sacrifício e trabalho em conjunto.

P – Em sua biografia, o senhor conta os bastidores de negociações muito confidenciais com grandes dirigentes. A negociação com a CBF foi a mais complicada da sua carreira?
CA – Não. Eu nunca tive um agente, então as negociações são diretas, e eu me sinto bem assim. Mas não foi nada complicado com a CBF. É que há dois anos havia a dúvida sobre a renovação do contrato com o Real Madrid e, quando a CBF me contactou, eu disse que havia a possibilidade de renovar. Se não renovasse, aceitaria a oferta, mas, se renovasse, gostaria de ficar aqui [na Europa], e foi o que aconteceu. No ano passado [neste ano, na verdade], não houve nenhum problema, foi uma negociação muito direta.

P – O senhor convocaria jogadores estrangeiros que jogam no Brasil se eles obtivessem a cidadania? Falou-se do goleiro argentino Rossi, do Flamengo.
CA – Para mim, não é um problema. Se está dentro das regras, não há problema nenhum. Eu convoco jogadores brasileiros, e, se algum deles tiver a cidadania brasileira, poderei convocá-lo sem problemas. No momento, observamos apenas os jogadores que podem jogar, não aqueles que não poderiam.

P – O senhor fala abertamente do seu esquema tático. Não teme que, daqui até a Copa do Mundo, os adversários estudem bem o Brasil para neutralizá-lo?
CA – [Risos] Não acredito nisso, no futebol não há segredos. É uma vantagem da tecnologia, posso ver todos os jogos do mundo na televisão. Os segredos no futebol acabaram.

P – O Brasil ganha a Copa?
CA – Acho que sim. Temos que pensar que podemos ganhar a Copa do Mundo até o dia em que matematicamente não pudermos mais ganhar. A equipe tem chances de competir. A vitória depende de muitos fatores, pequenos detalhes. Não se pode garantir a vitória, mas o Brasil tem que pensar em lutar para ganhar.
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RAIO-X | CARLO ANCELOTTI, 66

Nascido em Reggiolo, em 1959, construiu uma sólida carreira como meia, atuando por Parma, Roma, Milan e seleção italiana. Aposentado aos 33, iniciou uma trajetória ainda mais impressionante como treinador, com cinco títulos da Champions League. Assumiu a seleção brasileira em maio deste ano.

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O ex-treinador da seleção disse também que era hora de se testar um treinador estrangeiro; “Existem bons treinadores brasileiros, mas a atmosfera era muito ruim. Havia uma má energia interna, com muitos problemas políticos”, disse

Folhapress | 22:36 – 17/11/2025

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