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Por Cláudio Ulhoa

Gilmar Mendes rompe equilíbrio institucional e acende alerta na República

Publicado em: 04/12/2025 14:54

Liminar que restringe pedidos de impeachment ao PGR é vista como ato de concentração de poder e provoca forte reação no Congresso.

Por Cláudio Ulhoa

Há decisões que passam pela República como meras formalidades jurídicas. E há decisões que, pela força do gesto e pelo impacto institucional, expõem uma fissura séria no funcionamento do Estado democrático. A liminar do ministro Gilmar Mendes, que retira dos cidadãos o direito histórico de pedir impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal e transfere essa legitimidade exclusivamente ao procurador-geral da República, além de impor quórum elevado de 2/3 para abertura do processo, está claramente no segundo grupo. E isso deveria preocupar qualquer brasileiro que compreenda o papel dos freios e contrapesos na democracia.

O que se viu não foi apenas uma interpretação jurídica. Foi uma reescrita unilateral da própria engenharia constitucional que regula o equilíbrio entre os Poderes. Pior: uma reescrita feita por um dos atores diretamente interessados no tema. A lei de 1950 é explícita ao dizer que qualquer cidadão pode apresentar denúncia por crime de responsabilidade. O Senado, por sua vez, tem competência exclusiva para decidir sobre a admissibilidade. Ao suspender esse modelo, ainda que provisoriamente, Gilmar Mendes assume um protagonismo que ultrapassa a função de “guardião da Constituição” e invade o terreno do Legislativo.

A justificativa apresentada, a de que regras flexíveis poderiam incentivar “impugnações temerárias”, ignora um ponto essencial: o impeachment, assim como a denúncia popular, é um instrumento de controle democrático, e não um mecanismo para afastar ministros a qualquer custo. Transformá-lo em ferramenta inacessível é, no limite, retirar da sociedade a possibilidade de reagir a abusos. Quando só o PGR, cujo cargo depende politicamente do Presidente da República, tem poder para acionar o Senado, cria-se uma blindagem institucional que não serve ao interesse público, mas ao fechamento do sistema de autocontenção entre cúpulas.

Não por acaso, a reação no Congresso foi imediata. Parlamentares de diferentes espectros ideológicos apontaram o risco de permitir que um único ministro altere, sozinho, o funcionamento de um dos pilares da República. O deputado Nikolas Ferreira anunciou uma PEC para restabelecer o direito do cidadão; o Partido Novo fez o mesmo. Senadores como Rogério Marinho e Carlos Viana lembraram o óbvio: não existe poder acima da Constituição. A própria presidência do Senado advertiu que a relação entre os Poderes exige reciprocidade, e que qualquer tentativa de usurpar prerrogativas legislativas será enfrentada.

O gesto de Gilmar Mendes consolida, ainda, um movimento mais amplo: o avanço contínuo do STF sobre competências políticas. Essa tendência, já criticada por juristas no Brasil e no exterior, produz consequências perigosas. Quando o Judiciário expande sua autoridade sem contrapesos, cria-se um desequilíbrio que afeta não apenas o Senado, mas toda a arquitetura institucional. A longo prazo, esse tipo de intervenção enfraquece a legitimidade dos próprios ministros e estimula uma crise de confiança que coloca o país num ciclo de tensão permanente.

Em vez de reduzir conflitos, a liminar os alimenta. Em vez de proteger a democracia, ela limita a participação popular. Em vez de garantir harmonia entre os Poderes, reforça a impressão de que existe um grupo imune à fiscalização, um poder que se autodefine e se autoprotege, alheio à Constituição que deveria respeitar.

A democracia não se desgasta apenas com rupturas abruptas. Ela se corrói de forma silenciosa, ato a ato, decisão a decisão, quando mecanismos de controle vão sendo removidos e o debate público é substituído por canetadas solitárias. Por isso, independentemente do julgamento final do STF, é fundamental que o Parlamento e a sociedade permaneçam vigilantes. O Brasil não pode naturalizar movimentos que concentram poder e diminuem a capacidade de questionamento, especialmente quando vêm de quem deveria ser o primeiro a zelar pelo equilíbrio institucional.

O episódio é grave. E seu impacto vai muito além de uma disputa momentânea: ele redefine, na prática, quem pode controlar quem. E esse é um risco que o país não pode ignorar.

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