País que acha Odete Roitman fada sensata pede um olhar crítico, afirma Taís Araujo
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Iolanda Braga abriu caminhos na televisão brasileira em 1965, ao se tornar a primeira atriz negra a protagonizar uma novela, em “A Cor da Sua Pele”, da TV Tupi. Quatro anos mais tarde, Ruth de Souza foi a estrela de “A Cabana do Pai Tomás”, na Globo, em uma trama sobre escravidão. Ainda assim, foram necessários mais 27 anos para que outra mulher negra assumisse o papel principal de um folhetim.
Essa virada só aconteceu em 1996, quando uma jovem Taís Araujo, de 17 anos, interpretou Xica da Silva na TV Manchete. Oito anos depois, a Globo enfim teria sua segunda protagonista negra -Preta, de “Da Cor do Pecado”. E levaria mais meia década para a emissora colocar no ar sua primeira heroína negra no horário nobre -uma Helena de Manoel Carlos, papel inédito para uma mulher não branca, em “Viver a Vida”. Ambas as personagens foram interpretadas por Taís, que agora celebra três décadas de uma carreira marcada por primeiras vezes.
Para construir essa trajetória de pioneirismos, abrir portas para outras mulheres negras e chegar a Raquel -uma das protagonistas do remake de “Vale Tudo”-, Taís enfrentou inúmeros momentos dolorosos. Foi hipersexualizada em “Xica da Silva”, e, anos depois, massacrada pela crítica em “Viver a Vida”. Mas ela não se lamenta.
“Faria tudo de novo. Passaria por todas as dores de novo. É tipo ter filho, entendeu? A gente esquece a dor e quando vê está tendo outro filho”, diz a atriz. “Não acredito em histórias de sucesso que não tiveram dor, erro. As histórias verdadeiras têm choro, frustração. As histórias de sucesso não são simples. Normalmente, são bastante complexas.”
No ano passado, Taís fez as pazes com aquele que por muito tempo foi visto como o maior tropeço de sua carreira -o papel de Helena. Em um vídeo nas redes sociais, a atriz aparece vestida como a personagem e a homenageia. “Te interpretar foi fundamental na minha construção. Graças a você, sou a mulher que eu sou hoje. Você me ensinou tantas coisas, Helena”, disse. “Eu acho que o Brasil de 15 anos atrás, na verdade, não estava pronto para ter uma mulher como você.”
Na época, a crítica especializada apontava falta de conflito na personagem, questionava a química do casal central, que ela fazia com o personagem de José Mayer, e colocava em xeque a performance da atriz. Mas, para muitas espectadoras negras, o impacto foi outro. Finalmente havia uma heroína negra, em horário nobre, com o cabelo crespo apresentado como um símbolo de beleza.
“Foi junto de você que nosso cabelo crespo, que nunca ganhava espaço na televisão, virou moda. Até hoje incontáveis mulheres me dizem que passaram a gostar dos seus cabelos -ou seja, das suas imagens no espelho- porque a sua presença estimulou isso”, diz Taís no vídeo.
Na entrevista, ela diz reconhecer o poder da teledramaturgia. “As novelas são fundamentais na construção da identidade de um povo. Acho que Helena prestou um serviço gigantesco.”
A personagem também provocou uma virada de chave na própria consciência racial da atriz. A partir dali, ela percebeu que não poderia mais interpretar nenhum papel sem considerar o fato de ser uma mulher negra. “A gente tinha um olhar um pouco ingênuo, achando que qualquer atriz poderia ser a Helena. Mas não era qualquer atriz -era uma atriz negra, no Brasil. Não encarar a personagem com o olhar racializado, sendo eu uma mulher negra, foi um equívoco.”
Esse entendimento também orienta sua abordagem atual em “Vale Tudo”, na pele de Raquel, a mãe protetora que sofre na mão da filha ambiciosa, a Maria de Fátima de Bella Campos. Na versão de 1988, as duas foram interpretadas por atrizes brancas -Regina Duarte e Gloria Pires. Agora, o remake aposta em um elenco mais diverso, o que, segundo Taís, transforma completamente a narrativa.
“É e não é a mesma personagem. Raquel está na base da pirâmide e Odete [Roitman], no topo. Seja onde for que essa mulher negra esteja, é importante que ela tenha um entendimento de que ela não vai ceder o lugar dela para ninguém. Não é porque a Odete é bilionária que ela vai abaixar a cabeça. Eu acho que é um recado bonito para o Brasil.”
Apesar do conflito de classes -e agora de raça- ganhar novo contorno na versão atual de “Vale Tudo”, parte da crítica nota um tom menos combativo em relação à original, que escancarava a corrupção e a falta de ética no país.
A própria autora do remake, Manuela Dias, já havia dito à Folha de S.Paulo, no ano passado, que “falar mal do Brasil não é mais revolucionário”. Já o ator Matheus Nachtergaele, que interpreta Poliana, melhor amigo de Raquel, vê sinais de autocensura por parte da Globo, que prefere evitar incômodos a boa parte da população.
Questionada, em uma primeira entrevista à Folha de S.Paulo, Taís se mostrou contrariada. “Acho que deveria fazer essa pergunta para a Manuela, não para mim. Quero saber aonde quer chegar com isso. Porque eu acho que é a escolha dela, cara”, disse a atriz. “Se eu ficar prestando atenção nas críticas, eu não vou trabalhar. Se eu ficar tentando suprir expectativas do outro, não vou fazer o meu serviço.”
Em uma segunda conversa, dias depois, Taís reconhece que a “Vale Tudo” atual poderia ser mais “pé na porta”. “A nossa novela hoje fala mais sobre as relações, e menos sobre política. Acho que é mais tímida nesse lugar. A gente está num Brasil muito diferente. No Brasil, a internet faz com que muitas pessoas sejam escutadas, o que é muito bom, mas, ao mesmo tempo, isso faz com que se tenha um cuidado maior para expor algumas histórias.”
Taís aponta que a novela fez uma concessão ao transformar o visual de Raquel após um salto temporal na trama, logo depois de ela descobrir as tramoias da filha e romper com ela. Agora, à frente de uma empresa de “catering”, a personagem assumiu uma aparência que acompanha a nova fase. O guarda-roupa ganha sofisticação, com estampas e acessórios que evocam elegância e poder, além de um novo corte de cabelo. Embora ressalte que a principal mudança está no interior da personagem -uma mulher que se vê como prioridade-, a atriz entende o peso do apelo visual para o público.
“As pessoas não aguentavam mais ela com vestido estampado. Gostaria que ela continuasse sem maquiagem, mas a gente tem uma demanda a atender. E isso também é bonito: ouvir o público, por mais que a gente discorde. A gente faz televisão, é popular. Por que resistir ao que as pessoas querem? Por que essa guerra com o público? A troco de quê? Eles querem ver a Raquel bonita, maquiada -então vamos entregar. A gente faz para eles, não para a gente.”
Mãe de João Vicente, de 14 anos, e de Maria Antônia, de dez, frutos do casamento com Lázaro Ramos, Taís admite que, em muitos momentos, foi difícil defender a maternidade de Raquel para o público impaciente com sua bondade -especialmente seu esforço em salvar a filha sem abrir mão da ética. “Estamos em um país que acha Odete Roitman, falando absurdos, uma fada sensata. E aí? A gente não vai olhar criticamente para esse país?”
“Vilãs são encantadoras? São. A gente ama as vilãs. Não é à toa que a gente ama a Carminha, que a gente ama a Nazaré, que a gente ama a Odete, que a gente ama a Maria de Fátima. Só que se o mundo fosse feito só por vilãs, a gente não teria novela”, diz.
Ela relembra uma das cenas mais emblemáticas da personagem, em que Raquel se recusa a ficar com uma mala recheada de dinheiro. “Ela não quis pegar uma mala com US$ 1 milhão porque não era dela. E foi criticada por isso. As pessoas acharam um absurdo ela não ficar com aquilo. Como assim se apropriar de algo que não é seu? Isso, para mim, é muito grave.”
Se há alguma timidez política em “Vale Tudo”, Taís segue na direção oposta. Sua trajetória na teledramaturgia e na publicidade a transformou em uma referência para mulheres negras, tanto no Brasil quanto na diáspora. Nos últimos anos, ela se tornou uma espécie de anfitriã de outras negras pioneiras do mundo.
Taís já entrevistou figuras como a artista Grada Kilomba, a apresentadora Oprah Winfrey e a atriz Viola Davis -que, inclusive, já visitou nos Estados Unidos. Mais recentemente, mediou uma mesa com a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie durante a Feira do Livro do Rio de Janeiro.
“Eu tinha um projeto de entrevistar todas essas mulheres. E ele foi se realizando de forma orgânica. Elas foram chegando até mim.”
Seu pioneirismo a consolidou não apenas como símbolo, mas como ponto de encontro para outras mulheres negras. No Brasil, tem se dedicado a dar corpo a figuras emblemáticas da cultura negra. Interpretou Marielle Franco no especial “Falas Negras” e se prepara para viver Elza Soares nos cinemas depois da novela.
“Que história a gente vai construir agora? O que vem daqui para frente? A verdade é que temos um roteiro em branco nas mãos. As mais velhas pavimentaram o caminho, e agora é a nossa vez de escrever a próxima parte, com base em tudo o que elas nos deixaram.”
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